Livro ensina norma culta sem ridicularizar língua falada
Autores e especialistas em linguagem falam sobre a polêmica do livro didático Por uma vida melhor e esclarecem: livro não ensina o português errado
15/07/2011
Ana Claudia Mielki
de São Paulo (SP)
“Nós pega os peixe”. Essa foi a frase que causou frisson entre jornalistas, linguistas e interessados em português. Retirada do capítulo 1 do livro Por uma vida melhor, da Coleção Viver, Aprender, a frase é uma dentre outras que pretende mostrar ao aluno da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a quem o livro é destinado, como as práticas linguísticas podem ser diferentes dependendo da situação do falante.
No entanto, pinçada de seu contexto, ela foi reiteradas vezes apresentada como sendo um estímulo ao uso “incorreto” da língua. O próprio uso do termo incorreto já estaria aqui induzindo a uma determinada compreensão do tema, que neste caso são as variações linguísticas, “pois não se trata de falar errado ou certo, mas de usar a forma apropriada ou inapropriada à situação dos falantes”, explica a professora Heloísa Ramos, uma das autoras do livro.
Segundo a autora, abordar isso nos livros didáticos é importante, pois se trata do ensino da língua materna. “Quando as pessoas vão à escola, elas já aprenderam seu idioma no ambiente familiar. Muitas vezes, a linguagem que o estudante leva para a escola não é aquela com a qual ele se depara nos livros, que tem a função de ensinar a norma culta. É importante que o estudante perceba que existem outras variantes”, explica.
Assim, no capítulo em questão, intitulado Escrever é diferente de falar, os autores buscaram partir da língua falada pelas camadas populares de jovens e adultos que vêm da periferia e da área rural (o que é uma realidade entre os alunos da EJA) para depois, dar um salto para a língua culta. Além da expressão “Nós pega os peixe” é possível encontrar no capítulo outras expressões que usam a variante popular como “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”, ambas dentro do eixo Concordância entre as palavras. Logo em seguida, explica cada um dos casos de concordância e apresenta exercícios para a adequação das frases à norma culta.
Qual a novidade?
O estudo e a incorporação das variações linguísticas no Ensino Fundamental não é nenhuma novidade. Esse conteúdo já estava presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1997. Nas universidades, nos cursos de linguística esse tema tem pelo menos 40 anos, “desde que William Labov, nos Estados Unidos, fez suas pesquisas pioneiras sobre a heterogeneidade linguística”, explica o doutor em Linguística, Marcos Bagno, da Universidade de Brasília (UnB). Em outras palavras, “o tratamento da variação linguística nos livros didáticos só é novidade para quem está completamente por fora do que vem sendo feito no Brasil há mais de vinte anos no ensino de língua”, diz.
Além disso, após um mês de repercussões na chamada grande mídia, ficou evidente a tentativa, por parte de alguns meio de comunicação, de fazer deste um debate da agenda política nacional. “Sob pretexto de criticar o livro, quiseram na verdade desestabilizar o ministro da Educação [Fernando Haddad] e o governo em geral, simplesmente porque a grande mídia, comprometida até a medula com as classes dirigentes, não tolera nada que valorize as pessoas menos privilegiadas”, avalia Bagno.
Parâmetros
O livro Por uma vida melhor foi desenvolvido dentro dos parâmetros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), adotado como legislação desde 1998. “Nesse sentido, cumpriu todas as etapas necessárias a sua aprovação”, explica Vera Masagao Ribeiro, coordenadora geral da organização não-governamental Ação Educativa, entidade responsável pedagógica pela publicação. “Além disso, o livro não ensina a falar a errado, como se difundiu, mas apresenta ao aluno as diferentes variações da língua para que ele tenha consciência da forma como falar em cada situação”, diz.
Fala e escrita
Outra questão levantada pelos críticos à obra foi o fato de ela supostamente manter uma supremacia do oral sobre o escrito, o que para Vera trata-se de um equívoco. “A obra em nenhum momento sugere tal supremacia. Ela enfatiza apenas que escrever é diferente de falar e, que, portanto, a língua deve adequar-se aos modos oral e escrito”.
De acordo com o doutor em Linguística, Jose Luiz Fiorin, professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), escrever é diferente de falar por diversos motivos, mas especialmente porque “na fala eu planejo e produzo o texto ao mesmo tempo em que o texto é recebido. Isso significa que todas as marcas de planejamento aparecem num texto falado, tais como hesitações, interrupções e correções. E o no texto escrito não. No texto escrito eu planejo, produzo, corrijo e só depois é que o texto é recebido”. “O texto oral é sempre um texto que está se fazendo, e o texto escrito é aquele que só é apresentado depois de feito e, essa é a grande diferença”.
Combater o preconceito
Conforme explica o professor Marcos Bagno o ensino da língua portuguesa não deve ser limitado ao ensino da norma padrão e nem mesmo à falsa noção de que a língua é um todo homogêneo. “O reconhecimento de que a língua não é uniforme, de que ela varia dentro da comunidade de falantes e muda ao longo do tempo, permite acolher de forma menos traumática os estudantes usuários das variedades linguísticas menos prestigiadas, compreender a língua que eles falam e prepará-los a incorporar as variedades urbanas de prestígio”, diz.
O não reconhecimento dessas variações linguísticas pode incidir no chamado preconceito linguístico. “O preconceito linguístico existe e se manifesta principalmente ao se ridicularizar certas variedades regionais da fala. Isso é uma coisa séria. Ridicularizar as variedades regionais é mexer com a identidade da pessoa”, afirma o professor Jose Luiz Fiorin.
Para ele, isso não quer dizer que não se deva ensinar a norma culta. Mas sim, “que o professor não deve nunca ridicularizar a linguagem que o aluno traz. O ensino de português nunca será eficaz se o aluno vir o ensino como não tendo a ver com a sua forma de falar. É preciso iniciar o ensino a partir da linguagem que a pessoa traz para depois ensiná-la o padrão culto”, diz.
Hoje no Brasil existe uma gama muito grande de variações linguísticas, que podem ser regionais, como as citadas pelo Fiorin, mas podem ser também relacionadas ao prestígio social, como afirmou Bagno. Esse último acredita que, em ambos os casos está em jogo, não apenas a necessidade de adequar o ensino para melhor atender aos alunos, mas também o jogo de força do poder, pois aqueles que se arvoram falar o português “correto”, fazem disso uma prerrogativa de distinção social.
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