segunda-feira, 6 de junho de 2011

Indústria das cheias no Nordeste



Descaso e mau uso de mantimentos deixa população descrente sobre doações aos desabrigados em Alagoas
31/05/2011

Charles Souto
Maceió (AL)

"Está muito baixo, bem abaixo do esperado”, afirma Rômulo Guedes, capitão do Corpo de Bombeiros de Alagoas, sobre a quantidade de doações arrecadada para as vítimas das enchentes que assolaram a região norte alagoana desde o final de abril. De acordo com a Defesa Civil Estadual, mais de 18 mil pessoas estão desalojadas ou desabrigadas em todos os 16 municípios atingidos pelas fortes chuvas dos últimos dias, mas até o dia 05 de maio, apenas cinco cestas básicashaviam sido entregues ao Quartel-Geral do Corpo de Bombeiros, principal ponto de arrecadação de donativos.
“Quando as pessoas deixam suas casas, tomadas pelas águas, saem com a roupa do corpo. Não dá tempo de levar água, alimentos, agasalho, colchões. Nos abrigos, todos precisam de tudo”, informa Guedes. “A Defesa Civil tem barracas e caixas d'água que sobraram das doações do ano passado, mas é material de infraestrutura. Não temos nada para atendimento imediato”, completa o capitão do Corpo de Bombeiros. Para ele, a baixa quantidade de doações é “por falta de comoção da população”.
E não se pode alegar desconhecimento da calamidade, já que a cobertura dos jornais e telejornais locais não poupou esforços na busca de entrevistados desesperados por terem perdido casas, móveis, plantações, entes queridos – uma criança morreu soterrada no município de São Luís do Quitunde – e que agora se veem obrigados a disputar espaço em galpões, hospitais, ginásios, fóruns, igrejas, ônibus e contêineres que servem de abrigo improvisado.
Para entender a aparente ‘falta de comoção’ da população alagoana não é preciso recorrer a estudos sociais ou psicanalíticos. Basta relembrar alguns eventos ocorridos nos últimos dez meses.

Mais do mesmo
Em junho de 2010, fortes chuvas assolaram o território alagoano, deixando mais de 70 mil desabrigados e desalojados e matando ao menos 27 pessoas. Ao todo, 26 municípios foram afetados pelas enchentes e o número de casas destruídas superou as 18 mil.
À época, todo o Brasil se somou à população alalagoana no esforço de angariar doações para as vítimas das enchentes. Os donativos foram de tamanha quantidade que José Eloi da Silva, então prefeito de Santana do Mundaú, uma das cidades atingidas pelas enchentes, resolveu levar alguns deles para casa. Uma operação da Polícia Civil apreendeu alimentos, roupas e donativos em sua residência.
Além de José Eloi, afastado do cargo após o escândalo, a Secretaria de Defesa Social constatou aos menos outros três desvios de doações, que acarretaram na prisão de três bombeiros.
Em paralelo à apuração de desvios localizados, o Ministério Público Federal iniciou procedimento administrativo em julho de 2010 para investigar a utilização das verbas federais destinadas aos municípios alagoanos atingidos e averiguar o eventual desvio de R$ 275 milhões depositados pelo governo federal na conta do governo do Estado.
O golpe de misericórdia para a combalida compaixão dos alagoanos veio no dia 28 de dezembro, quando um incêndio destruiu no bairro de Jaraguá, Maceió, o galpão que armazenava 20 toneladas de donativos e cerca de mil barracas destinadas aos desabrigados das enchentes, totalizando um prejuízo de R$ 12,5 milhões.
Laudo do Instituto de Criminalística de Alagoas concluiu que o incêndio foi criminoso e o Ministério Público apontou que o local não tinha condições para armazenar os produtos. Foram denunciados por negligência e omissão quatro militares, que ainda aguardam o fim do julgamento na Justiça Militar.
Além da investigação policial, o Ministério Público também questionou a motivo de os donativos não terem sido distribuídos aos desabrigados passados mais de seis meses das enchentes.
De acordo com o tenente-coronel Denildson Queiroz, então secretário-executivo da Defesa Civil Estadual, o material estava armazenado no galpão porque não havia mais necessidade de entregar as doações às vítimas das enchentes: “As roupas seriam repassadas a instituições de caridade. Não houve prejuízo para as vítimas das enchentes. Não havia mais demanda”, garantiu Queiroz.
Quatros meses depois, as fortes chuvas voltaram e a mesma Defesa Civil agora reclama da falta de doações.

Programa da reconstrução
Logo após a enchente de junho, na tentativa de dar uma resposta às dúvidas da população alagoana quanto à atuação do governo estadual no atendimento às vítimas do estado, o governador Teotonio Vilela lançou o Programa da Reconstrução.
De acordo com sua página oficial na internet, o Programa da Reconstrução consistiria de quatro etapas. “A primeira etapa tinha o objetivo de salvar vidas e a segunda dar condições de sobrevivência às vítimas, abrigando-as em alojamentos com cobertores, comida, roupas, remédios, etc. A terceira etapa tem função de dar condições dignas às famílias. Nela constituem a montagem de barracas, banheiros químicos com vaso sanitário e chuveiro à disposição, além de lavanderias e cozinhas comunitárias”. A última etapa seria a construção das casas.
Ainda de acordo com o programa, durante esse período de transição para suas novas residências, as famílias teriam “acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais para o tratamento dos traumas causados e para a adaptação à nova realidade”.
Os recursos federais destinados ao Programa da Reconstrução, entre verbas para atendimento emergencial às vítimas, construção de casas, recuperação de estradas e infraestrutura, ultrapassaram a casa do R$ 1,3 bilhão.
Entretanto, de acordo com Ronaldo Cardoso, coordenador da defesa civil de Santana do Mundaú, “das casas prometidas, não foi construído praticamente nada. Começaram agora a levantar os alicerces. A maioria dos desabrigados decidiu construir as casas no lugar onde foram destruídas”. Cardoso informa que, mesmo com as novas enchentes desse ano, os moradores “se recusam a ir para as barracas de novo porque há distância, os banheiros foram demolidos, a convivência é difícil e mais de 80% dessas pessoas já apresentam problemas psicológicos”.

“Até agora ninguém apareceu para nos dizer quando essas casas ficam prontas, nem para nos ajudar. No início, eles pagavam as mulheres para limpar os banheiros aqui, mas agora deixaram de pagar e também elas deixaram de limpar” informa o morador de Santana do Mundaú Fernando Teles, que desde as enchentes do ano passado divide uma barraca com mais sete familiares. “Nós fomos esquecidos. Ninguém vem aqui mais”, completa sua vizinha Rosilene Maria.
No município de Jacuípe, onde as cheias desse ano desalojaram mais 760 pessoas, nenhuma das 280 casas prometidas pelo governo do Estado desde o ano passado foi erguida. Nas palavras do prefeito Amaro Marques, “o governo só distribuiu cesta básica e água potável, mas nada do que prometeu executou”.
De acordo com informações da Secretaria Estadual de Infraestrutura, as primeiras casas só serão entregues em todo o estado a partir de junho de 2011, um ano após as enchentes.

Uma nova indústria
Assim como em Alagoas, as fortes chuvas do final de abril de 2011 também causaram enchentes e destruição em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Dos 55 municípios pernambucanos que foram atingidos, 26 deles estão em situação de emergência e nove decretaram estado de calamidade pública. Mas, de acordo com o governador Eduardo Campos, “o que conseguimos arrecadar não encheu nem um caminhão ainda”. O governador assegurou que não iria “admitir politicagens na distribuição de donativos” e completou dizendo que ninguém pode querer ser o “pai” da distribuição de doações.
A ressalva de Campos tem razão de existir. Com o fenômeno das enchentes se tornando cada vez mais recorrente – este é o terceiro ano consecutivo que cheias de grande proporção assolam a região Nordeste – começa a se conformar uma nova indústria, a indústria das cheias.
“Se na Indústria da Seca, a seca era usada para o interesse dos políticos, agora já começa a ter uma Indústria da Cheia”, comenta Hortência Mendes, pedagoga e integrante da Cáritas Regional Piauí. Com a experiência de quem acompanhou as vítimas das enchentes de 2009, que afetaram mais de milhão e 300 mil pessoas nos estados de Maranhão, Piauí e Ceará, Hortência denuncia que “na hora que começa a chover, todos os prefeitos dizem ‘Estado de Calamidade Pública’, ‘Estado de Emergência’, para quê? Para receber recursos do governo federal. Os recursos vêm e não são aplicados”. A pedagoga lembra que o Piauí recebeu R$ 126 milhões para trabalhar com as situações de emergência causadas pelas enchentes. Mas, segundo ela, “em todo lugar que nós fomos, não vimos esse recurso ser aplicado. O que vemos são as pessoas fazendo suas próprias casas, indo atrás do barro, para levantar a casa de taipa”.
Em setembro de 2010, um relatório do Ministério Público de Alagoas detectou superdimensionamento no número de desabrigados no município de São José da Laje. Ao solicitar a relação nominal das famílias que seriam contempladas com as novas casas no município, o promotor Jorge Dória descobriu que nem a prefeitura nem o governo do estado tinham esses nomes. “Como eles podem dizer que são mil casas, se eles não têm o nome das pessoas?”, indagou o promotor. Foi então que, após realizar nova recontagem, o Ministério Público descobriu que em São José da Laje 1.155 pessoas ficaram desalojadas e 155 desabrigados, ao contrário dos 4.980 desalojados e 703 desabrigados informados anteriormente. O que equivale a uma redução de 77% no número de desabrigados na cidade. O Ministério Público aconselhou que novas avaliações fossem realizadas nos demais municípios.

Atacar as causas
Novas chuvas são esperadas para os próximos meses – e com elas novas calamidades.
Ao não lidar com os problemas estruturais, atuando para amenizar as conseqüências das tragédias ao invés de buscar combater suas causas, os governos locais e federal transformam as catástrofes numa fonte inesgotável de verbas e projetos faraônicos. Na Zona da Mata de Pernambuco e Alagoas, por exemplo, já se planeja a construção de pelo menos cinco barragens de contenção, cuja previsão de gastos é de R$ 380 milhões em cada uma.
A mesma Zona da Mata onde a cana-de-açúcar avança por sobre comunidades camponesas, matas nativas, manguezais e margens de rios, expulsando antigos moradores para as encostas e morros das periferias urbanas, impossibilitando a captação e escoamento das águas da chuva e aumentando o assoreamento dos rios. Sem combater esse avanço, não haverá doações e comoção suficientes para impedir que novas catástrofes se repitam a cada período de chuvas.

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